OS ESCRIBAS

Letras que se confundem em histórias de instantes que passam a correr pelas vidas passadas e futuras, reais e imaginárias, ditas e escritas pelas mãos que imprimem em cada tecla, a vontade, o desejo, a emoção e o interminável percurso labiríntico de quem escreve por prazer.

26 junho 2007

M E M Ó R I A S - Uma história verdadeira

Tudo aconteceu num fim-de-semana do ano de 1970 quando fomos visitar uns amigos que temos na Corunha e eles nos convenceram a ir almoçar a Ferrol. Nessa altura eu tinha um NSU 1000, carro de afinação complicada, sem representação em Espanha, e que nunca me tinha dado problemas. Só que naquele dia resolveu enguiçar. A meio do trajecto da Corunha a Ferrol foi sempre aos soluços como se tivesse o carburador entupido. Chegados a Ferrol, resolvi parar numa gasolineira para obter ajuda, já que ao domingo não havia oficinas abertas.
Discutia-se se não seriam as velas ou água na gasolina, quando, ao nosso lado, sem nos termos apercebido da sua presença, um jovem bem apessoado opinou:
- Hombre, son los platinos!
Dirigiu-se ao motor do carro arregaçando as mangas, pronto a intervir, quando eu, preocupado, o informei que não era conveniente mexer na parte mecânica já que na oficina da marca de origem, no Porto, só conseguiam afinar o ponto do motor por meios electrónicos, o que correspondia à verdade. Fiquei surpreendido quando ele, apontando um NSU idêntico ao meu, estacionado a cerca de 30 m, disse, no seu Castelhano:
- Vês aquele carro? Quem o afina sou eu. Só quando necessito de peças é que vou ao Porto à NSU comprá-las ou para fazer as respectivas revisões!
Rendi-me. Com uma ligeireza desconcertante desmontou os platinados substituindo-os por outros que havia ido buscar ao porta-luvas do seu carro.
Devido à facilidade com que desempenhou a tarefa, quando terminou e testamos o carro, perguntei-lhe naturalmente se era mecânico. Ele dando-me um cartão de visita identificou-se como oficial Capelão e Cura da Marinha em Ferrol.
- Tem graça, disse-lhe, dando-lhe um cartão meu, então curas almas e carros! Como te posso recompensar?
Ao que me respondeu:
- Hoy yo te he ayudado, mañana quien sabe tu me ayudaràs a mi?”
E foi com estas palavras que o Capelão da marinha de Ferrol se despediu de nós, depois de um forte abraço de despedida.

Passado uns anos, talvez seis, estava eu no meu gabinete, no então Banco Português do Atlântico, na Praça D.João I, onde desempenhava funções técnicas, quando o telefone tocou. Um colega do balcão solicitava a minha presença porque tinha um problema complicado com um cliente e que, perante as dificuldades, ele evocara o meu nome como pessoa dos seus conhecimentos. Perguntei-lhe de quem se tratava, mas só me soube dizer que era um Oficial do Exército. Desloquei-me ao balcão e, sem dar nas vistas,procurei ver se algum dos clientes presentes era meu conhecido ou se estava alguém fardado. Nada. Quando me dirigi ao colega que me contactara é que um dos clientes presente, que não reconheci á primeira vista, me chama pelo nome e abraça efusivamente numa alegria exuberante, e só quando começou a falar é que reconheci que se tratava do cura de almas e de automóveis de Ferrol que se encontrava à civil.

Afinal tratava-se de um problema burocrático que exigia que alguém abonasse a sua idoneidade. E assim o meu amigo Capelão pôde levantar dinheiro para pagar na NSU uma reparação complicada no motor do carro.

Quando nos despedimos com outro forte abraço ele fitou-me e disse:
- Yo non te he dito en Ferrol que yo te he ayudado e que mañana me ayudarias tu a mi?
Até hoje nunca mais vi o Cura-Capelão.

Junho de 2007 - mendes bastos

1 Comentários:

Blogger A do Costume disse...

obrigada, caro novo escriba. pode continuar...abraço criativo,
a do costume

23:05  

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